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Rua movimentada

E quando o Contrato perde seu propósito antes mesmo de iniciada sua Execução?

“You know what, contracts they are like hearts, they are made to be broken”.

Essa insensível, meticulosa e inesquecível frase foi dita por Ray Kroc, o fundador do McDonald’s, brilhantemente interpretado por Michael Keaton no filme “The Founder” que, no Brasil, ganhou a divertida tradução “Fome de Poder”. Na ocasião, Ray travava uma discussão acalorada com os irmãos McDonald’s sobre os próximos passos da lanchonete norte-americana.

Na realidade, o desígnio de um contrato, ao menos no momento de sua confecção, é justamente o oposto da declaração de Ray já que os contratos devem ser cumpridos. No entanto, para toda regra, há exceções.

O Código Civil Brasileiro nos apresenta duas formas principais de resolução contratual, ou seja, quando ocorre o descumprimento de cláusulas contratuais por uma das partes: o inadimplemento e a onerosidade excessiva.

Entretanto, o Código é omisso no que diz respeito às hipóteses em que o contrato é  influenciado por circunstâncias sobrevindas entre a formação e a execução do negócio. Neste peculiar cenário, está-se diante do que a doutrina costuma chamar de “frustração do fim do contrato”.

Em poucas palavras, caracteriza-se como frustração do fim do contrato quando, ainda que a obrigação contratual continue sendo possível de ser cumprida, o contrato perde seu propósito, sua razão de ser, por não ser mais possível alcançar sua finalidade em virtude das mudanças circunstanciais alheia a vontade das partes. O caso hipotético abaixo permite uma compreensão prática.

O Doutor Castor e Johnny Estrella, respectivamente, locador e locatário, decidem celebrar contrato de locação de um suntuoso camarote muito bem localizado na Marquês de Sapucaí. Contudo, devido a uma questão totalmente imprevisível, apesar da permissão de realização de festas, o local foi interditado para qualquer desfile das escolas de samba.

Observações adicionais: Doutor Castor sabia que Johnny, não residente no Rio de Janeiro, vinha exclusivamente para assistir o desfile. De sua parte, Johnny também sabia que Doutor Castor promoveu uma ampla reforma no camarote após o fechamento do contrato de locação.

Neste contexto, vê-se que os contratos são firmados tendo em vistas razões e finalidades. A causa concreta do presente caso, ademais dos elementos que caracterizam esse tipo contratual, corresponde a troca entre preço e coisa para a finalidade de viabilizar ao locatário que assistisse ao desfile das escolas de samba. Esse, portanto, era um elemento decisivo do ajuste entre as partes.

Assim, a frustração do fim do contrato nada mais seria do que o sumiço posterior da causa real do contrato, cominando na extinção do negócio porque já não é mais possível obter seu propósito prático a despeito de permanecer totalmente possível sua execução. É exatamente a situação que se encontram o Doutor Castor e Johnny Estrella.

 Assim, com a sucessão dos acontecimentos, como o advogado de Dr. Castor deveria assessorá-lo tendo em vista que o dono do melhor camarote da Sapucaí investiu uma grana na modernização de seu espaço para receber seu locatário?

Uma ótima orientação para o Dr. Castor é exposta pelo amigo, advogado e professor de Direito Civil, Bernardo Salgado, em trabalho específico sobre o tema:

Segundo pensamos, na frustração do fim do contrato – em que o risco é comum, compartilhado pelos contratantes, sem que qualquer deles concorra para a superveniência da perda de sentido do ajuste – não há espaço para tais lucros cessantes, restringindo-se a indenização às despesas experimentadas com a preparação para a execução contratual. (…) Caso ainda não tenha sido iniciada a execução do negócio, o contratante imediatamente prejudicado pelo desaparecimento superveniente da causa concreta deve indenizar as despesas experimentadas pelo cocontratante, ressarcindo-lhe os gastos já incorridos com a preparação para cumprimento da avença (A frustração do fim do contrato no direito brasileiro. Disponível clicando aqui. Acesso em: 22 mar. 2021).

Por outro lado, por que Johnny Estrella deveria restituir considerável valor de uma melhoria que não usufruiu devido a circunstâncias alheias a sua vontade?

Em sentido diametralmente oposto, Flávio Tarturce demonstra seu ponto de vista em consonância com os interesses de Johnny: “Assim sendo, se, por um motivo estranho às partes, o contrato perder sua razão de ser, será reputado extinto, mais uma vez com a resolução sem perdas e danos” (O coronavírus e os contratos – Extinção, revisão e conservação – Boa-fé, bom senso e solidariedade. Disponível clicando aqui. Acesso em: 22 mar. 2021).

Esse breve confronto de ideias foi manifestado aqui tendo em vista sua maior ocorrência em distintas situações nos últimos meses com a eclosão da pandemia do coronavírus que, a grosso modo, dificultou a execução literal de diversos compromissos contratuais.

A ocorrência da pandemia do coronavírus é um evento alheio a qualquer um dos contratantes pois trata-se de uma anormalidade jamais antes vista. Apesar de lamentarmos a ausência de previsão expressa da frustração do fim do contrato no Código Civil, compreendemos que trata-se de um momento complicado para se pensar em qualquer tipo de regulação deste instituto, cabendo assim, pelo menos por ora, que os contratantes, após esgotarem as tentativas extrajudiciais de acordo, busquem o Poder Judiciário para dirimir casos como o do Dr. Castor e Johnny Estrella.